Fumei uma cigarrilha.
Esta viagem levou quatro homens - dois deles fumadores - a viver uma vida de rockstar com uma noite por cidade e viagens de carro todos os dias. O plano era apenas este e o destino final, de uma forma muito vaga seria Oviedo. Sempre em Espanha, no Norte, onde os bares estão sempre cheios e onde se fuma em todos os restaurantes e pubs e até na mercearia. No início da aplicação da lei do tabaco, não faltava quem dissesse que a indignação dos fumadores só podia passar rápido e tudo nos viria a parecer natural mais tarde, e tinham razão. Estranhei os cinzeiros nas mesas, o fumo em restaurantes, os meus amigos que acendiam cigarros sem se levantar da mesa, e juntar essa novidade a umas férias tornou-me a vida mais difícil. Continuo a achar que é fácil deixar de fumar, só que as tentações agora são subtis e suaves, sem ansiedades de maior pelo meio. É mais natural estar sem fumar do que a fazê-lo, mas a dúvida entre pisar o risco e fumar só um ou estar permanentemente a adiar o desejo deve ficar cá por muito tempo.
Começámos no sábado em Salamanca, o dia seguinte em Zamora e na segunda-feira para León. Aqui começam os meus problemas. Não dava nada por esta terra e ainda por cima chovia pela primeira vez. Entrámos na cidade às cinco da tarde, hora de estar fechado tudo o que nos interessava (estabelecimentos com comida) e percorremos a pé plaza após plaza, sem sucesso. León irritou-me assim que entrei lá dentro, como aliás todo o país e a insistência idiota na siesta, e já não havia catedrais imponentes ou presentes do Gaudí à cidade que a salvassem da minha opinião. A chuva continuava mas enquanto procurávamos, começava lentamente a desvendar-se qualquer coisa de atraente. Um orgulho espanhol, mas diferente, sentia-se pelas ruas, grafittis, cartazes da cidade que ora apelavam à 3ª República ora a Leão sem Castela (não era de independência que falavam), enfim, cenas de espanhóis. Já pouco convencidos, virámos uma esquina e olhámos pela primeira vez a Plaza S. Martin, com um alvoroço enorme do que parecia ser um jantar de família no meio da rua. Ainda chovia e tentámos passar ao largo, quando uma mulher me pega pelo braço e nos convida para um copo de sidra com eles. Debaixo de um toldo improvisado estava uma gigantesca mesa de marisco a ser oferecida à população em geral. Eram seis e meia da tarde de uma segunda-feira e as pessoas tinham ali na rua à disposição total uma mesa de sapateiras, navalheiras, gambas e percebes além de vinho e sidra. Jantámos, claro.
Cerca de uma hora depois, a praça ficou deserta e ficámos rodeados de restaurantes e tabernas agora abertos. Pela cabeça de ninguém passava comer, mas pedimos um copo de vinho na primeira, e recebemos com a taça um prato de rodelas do melhor chouriço de toda aquela semana. Entreolhámo-nos com a estranheza de quem já pagou por tremoços e fomos para a taberna seguinte. Mais vinho e mais comida. Ovos, batatas, cogumelos, lulas, queijos, tudo sempre e a cada vez que pedíamos um copo de vinho.
Foi numa delas, ao centro da praça que dei de caras logo que entrei com uma rapariga que servia atrás do balcão, com piercings num lábio e numa narina, olhos pretos, cabelo muito preto e comprido e vestida de preto (porque a farda do restaurante era preta). E juro que me olhava com um sorriso que não era só agradável mas outra coisa qualquer. E era absurdamente simpática e com enorme vontade de conversar, o que fez, ao balcão, todo o tempo que lá estive, enquanto ia trabalhando. Talvez eu já devesse ter mencionado com que facilidade nos cruzávamos com mulheres deslumbrantes nos últimos dias. Foi um cliché que quis evitar, mas a verdade é que elas estavam por toda a parte, só que esta, sentada do outro lado do balcão a conversar comigo despertou-me não sei de onde uma vontade incontrolável de ter um cigarro e fumá-lo. Nem sei quanto tempo mais estivémos ali ou a que horas saímos de lá para o bar de "rock n' roll" que ela sugeriu, com um mapa mal desenhado num papel, mas em breve já eu estaria só com o Proletário, sentado num enorme balcão e a brincar com um Winston apagado entre os dedos. Olhei para ele e concordámos, por aquela noite apenas, suspender a aposta, para não ser essa a idiota razão que nos impediria de fumar. Depois de um suspiro longo voltei a lembrar-me que não quero fumar como se ouvisse um estalar de dedos, devolvi o cigarro apagado, respirei fundo e senti todo o bar, quase vazio, a voltar de repente ao normal como um encantamento que terminava, e com ele desapareceu também a minha pequena Circe, criatura que não voltei nem creio que volte a ver.
No dia seguinte já eu conduzia pelas montanhas das Astúrias até Cangas de Onís, e na quarta estávamos a experimentar o lançamento da sidra para copos no chão em Oviedo. O teste de León já me parecia tão longe que enrolei um cigarro a um amigo e o entreguei em excelentes condições e pronto a acender. Nessa noite o meu subconsciente resolveu até dar-me um prémio e sonhei que fumava um cigarro enrolado (enquanto conversava com o Robert Redford que me explicava que eu estava a fazer bem). A descontração da sensação de vitória fez-me aceitar sem pestanejar a decisão de um último destino antes do regresso: Santiago de Compostela.
Santiago pode muito bem ser a cidade em que me sinto menos forasteiro, é a mais confortável que conheço, e - lamento - tem qualquer coisa de parecido com vida em si, para além das pessoas que lá estão. Mudava-me já sem dificuldades. Mas não punha lá os pés desde 2002, e de repente no meio daquelas ruas sou apanhado à traição por esquinas, bares, fachadas, praças que me confrontavam com uma familiariedade demasiado estranha e que eu achava que já não tinha. E pela primeira vez desde que deixei de fumar senti-me desconfortável por outra razão que não a de não poder fumar. E mantive-me assim por horas, ansioso num sítio tão familiar como a minha casa. Um gajo espera que uma miúda gira de preto nos tente e está preparado para resistir, mas não se espera que uma cidade inteira invente merdas para me entalar.
A única reacção que tive foi arranjar um marco novo para aquela praça nas traseiras da Catedral e sem pressas comprei duas cigarrilhas Montecristo (eu não percebo absolutamente nada de cigarrilhas, mas achei que este nome era como ouvir que um documentário tem a chancela de qualidade da BBC) que o Proletário me fez o favor de aceitar partilhar. Também sei bem que se furo as regras devia fazê-lo com um charuto, mas achei excessivo e além disso os charutos dão-me vontade de fumar cigarros. Numa esplanada, a beber uma weiss, longe daqui e a pensar que gosto muito de fumar. O resto da noite foi o normal em Santiago, sem pensar em cigarros, coisa que se manteve até agora. Durante a cigarrilha não conversei com o Robert Redford mas ouvi algures um concerto de Da Weasel a acabar (aquela música do uh-uh-ye-ye). Parece que estavam lá.
Continuo portanto a deixar de fumar e não sugiro coisa nenhuma a ninguém.
Esta viagem levou quatro homens - dois deles fumadores - a viver uma vida de rockstar com uma noite por cidade e viagens de carro todos os dias. O plano era apenas este e o destino final, de uma forma muito vaga seria Oviedo. Sempre em Espanha, no Norte, onde os bares estão sempre cheios e onde se fuma em todos os restaurantes e pubs e até na mercearia. No início da aplicação da lei do tabaco, não faltava quem dissesse que a indignação dos fumadores só podia passar rápido e tudo nos viria a parecer natural mais tarde, e tinham razão. Estranhei os cinzeiros nas mesas, o fumo em restaurantes, os meus amigos que acendiam cigarros sem se levantar da mesa, e juntar essa novidade a umas férias tornou-me a vida mais difícil. Continuo a achar que é fácil deixar de fumar, só que as tentações agora são subtis e suaves, sem ansiedades de maior pelo meio. É mais natural estar sem fumar do que a fazê-lo, mas a dúvida entre pisar o risco e fumar só um ou estar permanentemente a adiar o desejo deve ficar cá por muito tempo.
Começámos no sábado em Salamanca, o dia seguinte em Zamora e na segunda-feira para León. Aqui começam os meus problemas. Não dava nada por esta terra e ainda por cima chovia pela primeira vez. Entrámos na cidade às cinco da tarde, hora de estar fechado tudo o que nos interessava (estabelecimentos com comida) e percorremos a pé plaza após plaza, sem sucesso. León irritou-me assim que entrei lá dentro, como aliás todo o país e a insistência idiota na siesta, e já não havia catedrais imponentes ou presentes do Gaudí à cidade que a salvassem da minha opinião. A chuva continuava mas enquanto procurávamos, começava lentamente a desvendar-se qualquer coisa de atraente. Um orgulho espanhol, mas diferente, sentia-se pelas ruas, grafittis, cartazes da cidade que ora apelavam à 3ª República ora a Leão sem Castela (não era de independência que falavam), enfim, cenas de espanhóis. Já pouco convencidos, virámos uma esquina e olhámos pela primeira vez a Plaza S. Martin, com um alvoroço enorme do que parecia ser um jantar de família no meio da rua. Ainda chovia e tentámos passar ao largo, quando uma mulher me pega pelo braço e nos convida para um copo de sidra com eles. Debaixo de um toldo improvisado estava uma gigantesca mesa de marisco a ser oferecida à população em geral. Eram seis e meia da tarde de uma segunda-feira e as pessoas tinham ali na rua à disposição total uma mesa de sapateiras, navalheiras, gambas e percebes além de vinho e sidra. Jantámos, claro.
Cerca de uma hora depois, a praça ficou deserta e ficámos rodeados de restaurantes e tabernas agora abertos. Pela cabeça de ninguém passava comer, mas pedimos um copo de vinho na primeira, e recebemos com a taça um prato de rodelas do melhor chouriço de toda aquela semana. Entreolhámo-nos com a estranheza de quem já pagou por tremoços e fomos para a taberna seguinte. Mais vinho e mais comida. Ovos, batatas, cogumelos, lulas, queijos, tudo sempre e a cada vez que pedíamos um copo de vinho.
Foi numa delas, ao centro da praça que dei de caras logo que entrei com uma rapariga que servia atrás do balcão, com piercings num lábio e numa narina, olhos pretos, cabelo muito preto e comprido e vestida de preto (porque a farda do restaurante era preta). E juro que me olhava com um sorriso que não era só agradável mas outra coisa qualquer. E era absurdamente simpática e com enorme vontade de conversar, o que fez, ao balcão, todo o tempo que lá estive, enquanto ia trabalhando. Talvez eu já devesse ter mencionado com que facilidade nos cruzávamos com mulheres deslumbrantes nos últimos dias. Foi um cliché que quis evitar, mas a verdade é que elas estavam por toda a parte, só que esta, sentada do outro lado do balcão a conversar comigo despertou-me não sei de onde uma vontade incontrolável de ter um cigarro e fumá-lo. Nem sei quanto tempo mais estivémos ali ou a que horas saímos de lá para o bar de "rock n' roll" que ela sugeriu, com um mapa mal desenhado num papel, mas em breve já eu estaria só com o Proletário, sentado num enorme balcão e a brincar com um Winston apagado entre os dedos. Olhei para ele e concordámos, por aquela noite apenas, suspender a aposta, para não ser essa a idiota razão que nos impediria de fumar. Depois de um suspiro longo voltei a lembrar-me que não quero fumar como se ouvisse um estalar de dedos, devolvi o cigarro apagado, respirei fundo e senti todo o bar, quase vazio, a voltar de repente ao normal como um encantamento que terminava, e com ele desapareceu também a minha pequena Circe, criatura que não voltei nem creio que volte a ver.
No dia seguinte já eu conduzia pelas montanhas das Astúrias até Cangas de Onís, e na quarta estávamos a experimentar o lançamento da sidra para copos no chão em Oviedo. O teste de León já me parecia tão longe que enrolei um cigarro a um amigo e o entreguei em excelentes condições e pronto a acender. Nessa noite o meu subconsciente resolveu até dar-me um prémio e sonhei que fumava um cigarro enrolado (enquanto conversava com o Robert Redford que me explicava que eu estava a fazer bem). A descontração da sensação de vitória fez-me aceitar sem pestanejar a decisão de um último destino antes do regresso: Santiago de Compostela.
Santiago pode muito bem ser a cidade em que me sinto menos forasteiro, é a mais confortável que conheço, e - lamento - tem qualquer coisa de parecido com vida em si, para além das pessoas que lá estão. Mudava-me já sem dificuldades. Mas não punha lá os pés desde 2002, e de repente no meio daquelas ruas sou apanhado à traição por esquinas, bares, fachadas, praças que me confrontavam com uma familiariedade demasiado estranha e que eu achava que já não tinha. E pela primeira vez desde que deixei de fumar senti-me desconfortável por outra razão que não a de não poder fumar. E mantive-me assim por horas, ansioso num sítio tão familiar como a minha casa. Um gajo espera que uma miúda gira de preto nos tente e está preparado para resistir, mas não se espera que uma cidade inteira invente merdas para me entalar.
A única reacção que tive foi arranjar um marco novo para aquela praça nas traseiras da Catedral e sem pressas comprei duas cigarrilhas Montecristo (eu não percebo absolutamente nada de cigarrilhas, mas achei que este nome era como ouvir que um documentário tem a chancela de qualidade da BBC) que o Proletário me fez o favor de aceitar partilhar. Também sei bem que se furo as regras devia fazê-lo com um charuto, mas achei excessivo e além disso os charutos dão-me vontade de fumar cigarros. Numa esplanada, a beber uma weiss, longe daqui e a pensar que gosto muito de fumar. O resto da noite foi o normal em Santiago, sem pensar em cigarros, coisa que se manteve até agora. Durante a cigarrilha não conversei com o Robert Redford mas ouvi algures um concerto de Da Weasel a acabar (aquela música do uh-uh-ye-ye). Parece que estavam lá.
Continuo portanto a deixar de fumar e não sugiro coisa nenhuma a ninguém.