Um blogue na sua segunda época e agora sem objectivos materialistas e apostas por resolver. Pancadinhas no ombro, sentimentos de desilusão e mágoa e bilhetes para o próximo jogo do Sporting podem ser enviados para adeuscianeto@gmail.com

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Smokeasy

Os fumadores são um grupo fechado e cúmplice e sabem-no bem. Um grupo que vem de fumar às escondidas no liceu e que seguiu o seu caminho até à idade adulta mas pouco habituados à legitimidade. Em quantos de nós não ficou o reflexo de espreitar quem entra pelo café quando se está de cigarro na mão, quantos resistem ao arrepio de uma chave a rodar na porta, como esquecer o mórbido mas romântico som do papel do cigarro a queimar no silêncio da noite em casa quando já era um pouco mais seguro fumar?

Fumar comporta clandestinidade desde que nasce, e mesmo quando tudo é posto às claras e já não há pai, professor, primo mais velho ou colega da mãe que nos atemorizem a passa discreta, há sempre escondida e quase resolvida a sensação de prevaricar. Quase.

A relação cigarro-pais é um tema fascinante de onde vamos excluir gente aborrecida que diz que quando começou contou logo aos pais "sem problemas". E quando isto é verdade ainda é mais aborrecido. A partir daqui quase todas as histórias são interessantes.

O distraído que se deixou apanhar na rua, ou na café do bairro. Este é o tipo que merece ser apanhado, que nunca soube explorar a arte da dissimulação. No fundo, talvez fosse o medo que o movia e quisesse ser apanhado e resolver aquilo como quem sofre de vertigens. Aconteceu com a maior parte das pessoas que conheço, e hoje quase todos fumam à frente dos pais (só há dois tipos de fumadores - os que conseguem e os que não conseguem fumar á frente dos pais).

Gosto também dos que se revelam no seu casamento, uma posição inatacável e ao mesmo tempo um sublinhar do rito de passagem. É possível mesmo que venha a despertar uma pontinha de orgulho no pai já de si babado. A pessoa tem, no entanto, que casar. O que nem sempre acontece a toda a gente.

Há um outro tipo, mais comum do que se pensa, que é aquele que foi denunciado pelo irmão, normalmente a uma mesa de jantar. Penso que as pessoas sem irmãos não sabem verdadeiramente o que é viver num permanente estado de perigo de todo o tipo de denúncias, contendo ou não verdade, a que uma pessoa está sujeita durante a infância e adolescência. Do equilíbrio instável que é necessário gerir alternando entre a informação preciosa, a ameaça e a diplomacia. No fundo, acho que os filhos únicos não conhecem o cinismo.

Seja qual for a história que o acompanha, ninguém sai de toda esta pressão incólume e fumando como se fosse um acto muito natural. Quando saiu a lei, os lingrinhas dos fumadores ergueram-se unidos na indignação dos seus direitos violados, chamaram a si a constituição, direitos humanos universais e europeus, e quiseram fazer crer o resto do mundo que não adoraram esta lei. Como regozijaram (eu incluído, na altura) com o regresso da clandestinidade e do cigarro em grupo, não atrás do pavilhão gimnodesportivo, mas à porta do restaurante ou do trabalho. É possível outra vez ter medo de ser apanhado.

Há pessoas que esperam para fumar num sítio onde é proibido. Esperam horas até o bar fechar e poder enfim puxar de um cigarro clandestino, como quem está num speakeasy nos anos 30 e ouve lá fora rajadas de tiros e pneus a chiar e toca um chorus de trompete, antes de sair pelas ruas de Chicago à procura de um holandês com três nomes. O mundo deve andar chato e esta lei sempre veio animar um bocado os tempos modernos.